terça-feira, 20 de outubro de 2009

Laureano Barros, o homem que viveu para a sua biblioteca - III

O senhor Doutor» “O doutor foi a pessoa mais honesta e culta que conheci à face da terra”, diz Manuel Rocha, que hoje tem 36 anos, mas está na quinta desde criança. “Ele para mim era tudo. Sempre pensei: com este homem, não preciso de mais nada”. Um dia, Nuno Leitão, que trabalhou na quinta mas depois estudou informática de gestão, ofereceu-se para catalogar toda a biblioteca em computador. Laureano agradeceu, mas não precisava: tinha os ficheiros todos na cabeça. Todos falam do “doutor”, hoje, com incondicional afecto e uma orgulhosa emoção. A exaltação quase fanática, possessiva, de quem sente ter tocado uma esfera superior da existência. Não é fácil entender que tipo de influência Laureano exerceu sobre os espíritos destes jovens. Mas basta falar um pouco com eles para perceber que ainda lhe estão submetidos. Têm uma transparência comovente no olhar, que nos faria confiar-lhes a própria vida, sem hesitação.

Nos últimos tempos de vida, Laureano começou a preocupar-se com a posteridade. Não teve nenhuma fraqueza religiosa – manteve-se agnóstico até ao fim – mas passou a tomar disposições. Doou todos os bens aos filhos para os poupar a burocracias e eventuais contendas. Organizado e precavido como era, passou os últimos anos a preparar o seu desaparecimento, mas a sua grande preocupação eram, obviamente, os livros. À medida que se aproximava do fim, ia perdendo o interesse por tudo excepto pelos livros.

O Fim» Apercebendo-se de que os filhos não queriam a biblioteca, pensou em várias soluções, mas nenhuma lhe agradou. Por fim, deixou de se preocupar com o assunto, mergulhando numa estranha apatia, numa inconsciência meticulosa e desesperada.

No seu afã de tudo medir pela beleza dos livros, de sublimar neles os seus dias e o seu futuro, nunca lhe passou pela cabeça que a biblioteca pudesse não ser eterna. Mesmo sabendo que em breve tudo aquilo seria vendido em leilão, não deixou de folhear, tratar e acariciar os seus livros, com a leveza confiante com que uma criança diz adeus a quem ama.

Assim termina uma biblioteca que foi, afinal, a história da vida de um homem:
"Em ano de comemoração dos seus 50 anos de existência, a Livraria Manuel Ferreira promove um importante leilão de cerca de 6000 espécies bibliográficas constitutivas de uma das mais valiosas bibliotecas particulares do século XX, formada pelo dedicado bibliófilo Dr. Laureano Barros. “

Adaptado de um artigo, publicado no Jornal Público, em Junho de 2009.
A Equipa da Biblioteca, em Outubro, o Mês Internacional das Bibliotecas Escolares

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